Por Márcia Bindo
Revista Vida Simples - 01/2007
Fonte: http://planetasustentavel.abril.com.br/noticia/atitude/conteudo_231786.shtml?func=2
Um vestígio de mata Atlântica, em Nova Viçosa, extremo sul da Bahia. O jardim do escultor Frans Krajcberg, onde toda manhã, logo cedo, ele sai para caminhar, há mais de 35 anos. Ali Krajcberg se deixa perder para então se encontrar. E, com olhos frescos de quem vê pela primeira vez, percebe novas cores, formas e texturas de vida ao redor. Num instante, depara com uma planta velha e carcomida. Observa seus desenhos irregulares, sua fragilidade. E encontra beleza. Dá alguns passos e topa com um tronco seco e enrugado. Toca sua superfície áspera, rude. Mais beleza. Pega uma folha caída no chão, um tanto murcha e amarrotada, e a coloca contra a luz. Seus sulcos brilham como rios espelhados.
Foi num despertar de dia luminoso e abafado que me encontrei com o artista em suas andanças. Acompanhado sempre de sua máquina fotográfica ele - clic, clic - não deixa escapar seus objetos de êxtase. Tem mais de 20 máquinas e cerca de 200 mil fotos de miudezas da mata. "Um dia jamais é igual ao outro, a Terra está girando e cada momento é raro, único", diz Krajcberg durante os deslumbramentos em seu sítio. O artista polonês radicado no Brasil inspira a natureza para depois expirá-la em suas obras, fazendo delas um protesto contra a devastação do planeta.
Natureza inquieta
Ele tem fôlego de sobra. Está de pé às 5 da manhã e logo após a caminhada começa suas obras. Seguimos até um galpão abarrotado de matéria-prima: cipós, raízes, cascas, galhos e troncos de árvores empilhados - todos estão machucados. Foram recolhidos de queimadas e desmatamentos de florestas pelo Brasil afora. Com mais 12 ajudantes, ele seleciona os restos de madeira que serão lixados e preparados para formar enormes árvores ressuscitadas, suas esculturas.
O velho Duka, seu ajudante há 25 anos, conta que não existem regras nem linhas retas no trabalho de Krajcberg. Ele prefere formas irregulares, orgânicas. O resultado são peças com movimento, como se clamassem por atenção. "Minha vida é mostrar minha indignação contra a violência e o barbarismo que o homem pratica", diz o artista. As esculturas levam as cores dos vestígios das queimadas: vermelho e preto, fogo e morte. Não recebem nomes. Ele as chama de "meus gritos".
Apesar de ter se recuperado recentemente de uma pneumonia, Krajcberg parece ter mais urgência do que nunca para mostrar sua revolta. Com passos fortes, gestos ágeis e extrema lucidez - aparentaria ser bem mais novo que seus 85 anos, não fosse a pele judiada pelo sol. Dedé, filha de Duka e sua cozinheira, o chama para o almoço, momento em que ele desacelera o trabalho. "Ele não janta, toma apenas um chá com pãozinho e se recolhe com o sol, antes das 18 horas", ela diz. Uma pausa para respirar.
O artista nasceu na Polônia, em 1921. Conta que viveu os horrores da Segunda Guerra Mundial quando lutou no exército contra a Alemanha nazista. Depois também, ao descobrir que sua família havia sido dizimada com outros milhões de judeus, nos campos de concentração. Estudou engenharia na Polônia e artes na Alemanha e mudou-se para Paris. Lá, seu amigo e também artista Marc Chagall o incentivou a viajar para o Brasil. Desembarcou no Rio de Janeiro com 27 anos. Não conhecia ninguém, não sabia falar a língua e, para piorar, estava sem dinheiro. Dormiu ao relento durante uma semana, na praia do Flamengo. E partiu para São Paulo, onde trabalhou como operário no Museu de Arte Moderna, na primeira Bienal de São Paulo e como auxiliar do pintor Alfredo Volpi. Foi até o interior do Paraná para trabalhar como engenheiro-desenhista nas indústrias de um fabricante de papéis (que ironicamente utiliza madeira em sua produção). Abandonou o emprego para se isolar nas matas paraenses e se dedicar à pintura.
O artista, então, nasceu pela segunda vez. "Cresci neste mundo chamado natureza, mas foi no Brasil que ela me provocou um grande impacto. Eu a compreendi e tomei consciência de que sou parte dela", diz. Ali, no interior do Paraná, o artista encontra inúmeros desmatamentos e queimadas na floresta. As árvores retorcidas lembravam os corpos calcinados que tinha visto na guerra. "Desde então, o que faço é denunciar a violência contra a vida. Esta casca de árvore queimada sou eu", aponta para uma madeira chamuscada. Arte e natureza nunca mais iriam se desgarrar de Krajcberg.
Mundo próprio
Seguimos para sua casa. Dos galpões de trabalho atravessamos uma construção triangular onde fica seu escritório e seguimos um caminho que cruza a mata. Passamos por galinhas e cachorros - únicos companheiros de período integral, já que os ajudantes deixam a casa no meio da tarde - e desembocamos num sonho de criança: uma casa na árvore - mas de gente grande - suspensa a 12 metros do chão, construída sobre um tronco de pequi de quase 3 metros de diâmetro. Uma escada em caracol leva até a varanda. O sala-quarto-banheiro de madeira e vidro quase não tem mobília, apenas algumas cadeiras esculpidas pelo ermitão. Há algo estranho pendurado em uma viga da sala. Uma pele de cobra. O artista divide o teto com mais duas cascavéis, que se escondem no forro e vez ou outra aparecem. Você não tem medo?, eu pergunto. "Elas só atacam para se defender. Eu tenho medo mesmo é do bicho homem, o mais perigoso do planeta", diz o artista, que há muitos anos se afastou da vida urbana, escolhendo florestas e praias recônditas para morar. Mas não se sente só. "Nunca estou sozinho com toda essa vida à minha volta, que não me pergunta de onde sou ou o que faço. Isolado eu me vejo melhor", diz. Ele até já viveu numa caverna, no sopé do Itabirito, região mineradora de Minas Gerais. Lá descobriu os pigmentos naturais que utiliza desde 1964 para colorir suas pinturas. Retirava suas cores da montanha, raspando as paredes de dentro e de fora, transformando pedra em pó, pó em tinta. Como nossos antepassados.
O pequeno quarto é decorado com pedrinhas, conchinhas e coisinhas que ele encontra. A parede tem textura delicada: está coberta com folhas secas. Lá de cima, uma vista de tirar o fôlego: vislumbra-se uma parte de sua reserva natural de 1,2 quilômetro quadrado, onde já plantou mais de 10 mil mudas plantas nativas da mata Atlântica - e um resquício do mar. Vamos até lá?
A praia deserta fica a um instante da casa. Chegando, uma surpresa: o mar banhou-a com lixo vindo de outros lugares. Sacos, garrafas de plástico e cacarecos. Tomado por indignação, Krajcberg recita, com forte sotaque, seu credo: "Tudo é feito para ganhos imediatos. Ninguém percebe que a natureza reage. É preciso gastar tempo e dinheiro para educar e conscientizar as pessoas sobre a preservação da Terra". E conclui com o que ninguém quer ouvir: "Senão, o que vai sobrar para as próximas gerações?" Em meio ao mar de sujeira, o artista fala sobre os perigos do aquecimento global, do crescimento da população mundial, da poluição do mar (que a cada ano sobe mais um pouquinho por ali), da destruição da mata Atlântica naquele teco de Bahia, que em apenas 50 anos deu lugar para as plantações de eucalipto. O artista, que já denunciou a exploração de minérios em Minas Gerais, as queimadas no Paraná, o desmatamento da Amazônia, fica aflito com tanta passividade. "Onde estão os artistas e intelectuais para protestar contra as barbáries do século 20?" Não, ele não acredita na arte pela arte, mas na arte engajada, na arte pela vida.
Elogio à vida
Chegar a Nova Viçosa hoje em dia já é complicado. De Salvador, pega-se um avião para Porto Seguro e de lá uma série de ônibus pinga-pinga. Ou então de Vitória, com a mesma previsão para o itinerário - muita calma e paciência. Imagine então quando o artista aportou em Nova Viçosa, em 1972 - a cidade (hoje com 35 mil habitantes) tinha apenas duas ruas. Foi a convite do amigo e arquiteto Zanini Caldas, conhecido por seus trabalhos com madeira rústica, que tinha um projeto ousado: queria desenvolver na cidade uma espécie de comunidade intelectual. A idéia era construir uma escola livre de arte e ar quitetura aproveitando a natureza da região, com ambientes para meditação, atividades culturais e um pomar de frutas nativas. Foram vendidos lotes de 500 metros de frente para o mar para personalidades como Chico Buarque, Oscar Niemeyer e Dorival Caymmi. O projeto naufragou e os lotes foram retalhados pela administração municipal da cidade.
Apenas Krajcberg fincou sua raiz, arrebatado pela beleza do lugar. "Quando vi o mangue pela primeira vez, fiquei impressionado com tanto movimento. São tantas riquezas na natureza que nenhum artista vai conseguir criar", conta. O imenso manguezal fica nas margens do rio Peruípe, que banha Nova Viçosa. Toca seu celular. É seu barqueiro Oraldo Nascimento Costa, o "Baixinho" - ele vive apelidando as pessoas e sempre dança com o toque alegre do telefone. Krajcberg pede para Baixinho e Bicho-de-pé levar as "Prrrrreguiças" (no caso, eu e o fotógrafo João) até lá para conhecer mais uma fonte de inspiração. Esparramados pela margem do rio há dezenas de barquinhos de madeira coloridos - entre eles, o barco Natura, mesmo nome do sítio de Krajcberg, todo pintado de verde, com seu velho motor pó-pó-pó, que nos leva aos locais onde o escultor colhia restos de madeira no mangue. E para suas praias particulares de areias onduladas. Foi da observação dessas formações na areia após a maré baixar que o artista teve a idéia de imprimi-las em gesso. Com o molde, faz a impressão em papel japonês e pinta sobre o relevo com ondulações. A areia, em constante mutação, se eterniza.
De volta ao sítio, da estrada, dá para avistar duas grandes construções. Uma grande oca, suspensa pelas árvores-esculturas, guarda as pinturas de Krajcberg. Ao lado, em outra construção, está a coleção de esculturas gigantes, de mais de 4 metros de altura. Com mais cinco pavilhões que ainda faltam construir, ficará pronto o Museu Frans Krajcberg. Somente em 2006 o governo da Bahia aprovou a construção do museu em seu sítio. O artista ainda tem um ateliê em Paris, onde funciona um pequeno museu em sua homenagem. Lá fora ele é consagrado como um dos melhores escultores do século 20, mas é pouco conhecido no Brasil. Apenas em Curitiba há um espaço com suas obras no Jardim Botânico, "totalmente abandonado", como ele mesmo diz. Agora ele prepara algumas obras que irão, se o projeto vingar, para um espaço em sua homenagem na antiga serraria no Parque do Ibirapuera, em São Paulo, e para o Jardim Botânico, no Rio de Janeiro, onde será criado o Centro de Arte e Meio Ambiente, um espaço de exposição e debates sobre preservação. E assim seguirá sua voz, que parte da destruição e da morte, para fazer a defesa e o elogio da vida.
Para saber mais:
Livros
Natureza de Krajcberg, Frans Krajcberg, GB Artes
Frans Krajcberg, Roseli Ventrella, Moderna
Frans Krajcberg - A Tragicidade da Natureza pelo Olhar da Arte, Maria José Justino, Travessa dos Editores
Frans Krajcberg: a Obra que não Queremos Ver, Renata Sant'Anna e Valquíria Prates, Paulinas
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